Quem são os cyber-refugiados do Japão?

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ENTREVISTA | Mariana Shinohara Roncato
A socióloga Mariana Shinohara Roncato, doutoranda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, recentemente concedeu entrevista sobre os cyber-refugiados no Japão, tema do seu mestrado.
Pesquisadora do trabalho imigrante dekassegui e de relações de classe, gênero e raça, ela esteve no país e conheceu de perto a realidade dos working poor, os trabalhadores pobres japoneses.
Confira, a seguir, a íntegra da sua entrevista ao site Direto do Japão.
Quem são os "refugiados em cyber cafés" do Japão?
Mariana Shinohara Roncato - Falar de pobreza num dos países mais ricos do mundo é uma tarefa complicada. Afinal, diante de um mundo em que, segundo o Banco Mundial, quase a metade da população vive com menos de 2,50 dólares por dia. Se a pobreza no Japão não é tão visível quanto em outros países, impressiona saber que o número de japoneses pobres vem aumentando nas últimas décadas. Dados de 2013 do governo japonês revelam que 16% da população japonesa vive em estado de pobreza relativa. São pessoas que ganham menos que a renda média anual do país que, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), era de 23.458 dólares americanos. Uma das facetas dessa pobreza relativa são os "refugiados em cyber cafés".
O que são, exatamente, os chamados "refugiados em cyber cafés"?
MSR - Os "'refugiados em cyber cafés", ou os cyber-refugiados, são pessoas que não têm moradia e literalmente vivem em lan houses que funcionam 24 horas. Ou seja, são pessoas “sem teto”, mas que não necessariamente dormem na rua. Eles e elas passam a noite na cadeira disponibilizada na lan house, dormem/se acomodam como podem nela e, no dia seguinte, saem para trabalhar. Não se sabe ao certo quando o fenômeno começou mas ele ganhou destaque em 2007, quando foi abordado num documentário realizado por um programa japonês. Há uma estimativa de que, só em Tóquio, pelo menos 4 mil pessoas vivam nesta condição e é bem provável que este número seja mais alto. No entanto, no Japão, desde sempre se conhece a existência dos hotéis capsulas e pessoas que os utilizam para pernoitar e trabalhar no dia seguinte. Trata-se de uma forma de pobreza invisível, pois os cyber-refugiados continuam sendo trabalhadores ativos, embora realizem trabalhos intermitentes e informais, o que não os permite ter condições para alugar uma moradia.
Pessoas dormindo em cyber cafés deve ser uma ideia meio estranha para os brasileiros. Que estrutura esses cafés oferecem para quem os usa como '"casa"?
MSR - No Japão, principalmente em grandes cidades, a existência de cyber cafés que funcionam 24 horas é bastante comum. Só em Tóquio existem centenas. Os japoneses os utilizam como forma de entretenimento. [Nota do editor: Os cyber cafés costumam ter, além de computadores com jogos e conectados à internet, uma biblioteca de mangás que podem ser lidos no local]. Alguns acabam pernoitando por perderem o último horário do transporte público, assim como há os “moradores” destes espaços, chamados em japonês de netto cafe nanmin  e que eu chamo de cyber-refugiados. Diferentemente do Brasil, este tipo de estabelecimento oferece os mais diversos serviços. Alguns são estruturados com chuveiros e lugares para trocar de roupa, outros oferecem pacotes com bebidas e pequenos lanches à vontade. Muitos são divididos com baias para que o cliente tenha um pouco mais de “privacidade”.
Que tipos de pessoas estão nessa condição no Japão?
MSR - O exemplo clássico de um cyber-refugiado é o chamado working poor, ou seja, um trabalhador pobre, majoritariamente com trabalho informal, ou terceirizado, ou que realiza arubaito, ou seja, bicos. São pessoas que não possuem contrato de trabalho e/ou renda fixa para poder alugar uma moradia. Pois, assim como no Brasil, geralmente há a necessidade de um trabalho fixo ou pelo menos uma certa regularidade de renda para manter um apartamento e sabemos que o mercado imobiliário no Japão é bastante caro. Apesar de já ser um fenômeno antigo (principalmente com a reestruturação produtiva das empresas e o neoliberalismo japonês), a crise econômica de 2008 agravou este fenômeno e muitos trabalhadores demitidos naquela época e que não conseguiram reinserção no mercado se encontram nesta situação. Ou seja, é indiscutível que a principal razão deste problema são as condições precárias de trabalho, manifestadas na informalidade.
Por que essas pessoas chegam a essa condição?
MSR - Segundo as pesquisas realizadas até hoje, assim como uma recente pesquisa do governo japonês, a trajetória mais comum é a de um trabalhador que perde certa regularidade de renda e geralmente não possui um trabalho estável e, por isso, acaba chegando nesta condição. Há uma prevalência de homens, assim é expressiva a quantidade de pessoas na faixa etária que vai dos 30 aos 50 anos. Muitos também são migrantes internos, que de alguma forma foram “tentar a vida” em grandes centros urbanos, mas não tiveram a possibilidade de encontrar um trabalho regular. Vale ressaltar que a taxa de informalidade no Japão é muito alta e vem crescendo de forma muito preocupante desde a década de 1990. Atualmente a taxa de informalidade entre a população ativa no Japão é de mais de 37% e compreende trabalhadores com contratos não efetivos, temporários e em tempo parcial ou atuando como arubaito ou terceirizados, dentre outras relações não estáveis de trabalho.  A informalidade do trabalho (que é mais alta entre mulheres e imigrantes) tem uma relação muito direta com a precarização do trabalho. A população que trabalha nestas condições é a fração com mais chances de perder a moradia. O cyber refugiado tem a peculiaridade de ser um morador de rua e, ao mesmo tempo um trabalhador ativo. Por isso, a situação acaba se configurando como um tipo de pobreza bastante invisível e difícil de mapear.
Quanto custa passar uma noite num lugar como esses cyber cafés?
MSR - Depende. Em Tóquio, por exemplo, há estabelecimentos com pacotes noturnos que podem ser de 6 ou 12 horas. É geralmente a este tipo de pacote que os cyber-refugiados recorrem. Neles, você pode “alugar” o espaço — ou seja, uma cadeira e um computador — por menos de 2000 ienes (cerca de 18 dólares). Se você optar por espaços que possuem chuveiros, guarda-volumes ou algum tipo de pequena refeição, este valor aumenta. É importante dizer que existe todo um nicho de mercado para este tipo de população: lan houses, mangá cafés 24 horas (cafés que se pode ler mangás), hotéis-cápsula, guarda-volumes estrategicamente localizados na mesma região e, o mais importante, diversas agências de recursos humanos que contratam pessoas para trabalhos intermitentes, o que permite a manutenção deste fenômeno.
Diante desse valor, não é viável pagar um apartamento?
MSR - Dificilmente. O aluguel no Japão é bastante elevado e para alugar uma moradia, na maior parte dos casos, há a necessidade de uma renda fixa, o que não é o caso desta população.
Existe alguma política do governo japonês para lidar com essa questão?
MSR - Até onde eu saiba, o governo japonês tem realizado algumas pesquisas sobre a temática. Em teoria, há alguns tipos de proteção social para população que se encontra abaixo da linha da pobreza. Porém, não podemos dizer que estas ações conseguem atingir todas as pessoas que precisam delas. Há também sindicatos dos trabalhadores terceirizados que combatem essas formas precárias de trabalho. Mas, a meu ver, enquanto não houver a redução da informalidade de trabalho e um sistema de proteção social mais amplo, dificilmente esta situação se transformará.
Como foi a sua pesquisa com os refugiados em cyber cafés? O que você descobriu sobre essa população?
MSR - O mais curioso deste fenômeno é sua invisibilidade pois, diferentemente do morador de rua “clássico”, o cyber-refugiado é um “sem teto” que não dorme constantemente na rua. Embora quase todo cyber-refugiado tenha tido a experiência de dormir literalmente na rua, esta não é regra. Porque, para que essas pessoas consigam continuar trabalhando, há que se ter o mínimo de descanso, além de um local para a higiene cotidiana, para tomar banho. Isso é possível nas lan houses. Por conta disso e da utilização da tecnologia para encontrar trabalho (sites de recursos humanos, por exemplo), os cyber-refugiados continuam trabalhando nos mais diversos setores da economia. Ou seja, eles permanecem ativos economicamente, trabalhando e consumindo, a despeito de sequer terem uma casa para morar. Tudo isso na terceira maior economia do mundo.
 
 

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