RACISMO NAS ORGANIZAÇÕES: VIDA E TRABALHO NOS SUPERMECADOS

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Patrícia Rocha Lemos(Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora do CESIT/Unicamp)
A crueldade e a brutalidade do assassinato de João Alberto, homem negro espancado até a morte, causam profunda indignação. Se ainda nos resta algum pingo de humanidade, assim devia ser. O acontecimento ter se dado às vésperas do Dia da Consciência Negra, data que tem exigido tantas lutas pra se manter, trouxe à tona uma das expressões mais extremas e dilacerantes do nosso racismo estrutural que, de forma criminosa, nossos governantes e autoridades insistem em negar. Mas, passado o efeito desse estarrecimento imediato, corre-se o risco de que a “normalidade” nos imponha outras urgências e que absurdos inaceitáveis venham a se sobrepor sem que sejamos capazes de criar as ferramentas para compreender, combater e transformar essa realidade. 
Parece ter sido assim com muitos dos acontecimentos dos últimos dias, meses e anos. Apesar disso, alguns suspiros de esperança se abrem a partir daqueles que se revoltam e dão voz a essa luta. Mulheres e homens interpelam o conjunto da sociedade clamando que vidas negras importam, e não é de hoje. Calar não é e não pode ser uma opção. Mas como, então, adicionar algum elemento diferente para além do que já vem sendo dito sobre os absurdos que se expressam nesse crime?
Das mais diversas perspectivas sobre as quais podemos discutir como chegamos até aqui, como permitimos que matassem João Alberto, penso que a única em que eu poderia ter algo a contribuir tem a ver com, não quando, nem como, mas onde e por quem João Alberto, ou Beto, foi assassinado. O genocídio da população negra já é de conhecimento público, recolocado a cada novo balanço estatístico, ano após ano. E não faltaram casos concretos de homens, mulheres e crianças cujas histórias foram contadas na TV na forma de tragédia. O que falta para enxergarmos que não se trata de exceções, de situações extremas episódicas, mas de realidades que estão sendo gestadas o tempo todo no dia a dia de nossas vidas? Foi pensando nisso que decidi me ater à pergunta: que outras faces do problema nos mostram as circunstâncias desse crime? Sob que outros olhares podemos entender a conivência de um conjunto de organizações que permitem que isso continue a acontecer? Aqui, estou me referindo ao fato de esse homem negro ter sido espancado até morrer por um segurança e um policial militar na loja de supermercado para a qual esses sujeitos prestavam serviço. 
Estudando nos últimos anos o que tem sido as transformações contemporâneas no segmento supermercadista e seus impactos sobre o trabalho, ao analisar o tipo de organização do trabalho e as estratégias de gestão que foram se difundindo, especialmente pelas grandes transnacionais varejistas, estou convencida de que esse fato não é mero acaso, mas o resultado de uma confluência de fatores que reforçam e legitimam os mais profundos alicerces do racismo. 
Essas organizações têm adotado cada vez mais políticas de estabelecimento de metas com pressões individuais e exposição de resultados de forma pública, vexatória e muitas vezes de humilhação. No caso da rede norte-americana Walmart, maior empresa em faturamento do mundo¹, práticas como essa, muitas vezes denominadas de “motivacionais”, geraram inúmeras ações na Justiça do Trabalho brasileira. Ainda que, em muitos casos, tente-se responsabilizar exclusivamente o indivíduo (gerente ou superior que praticou tal ato), quando olhamos para a política de gestão do trabalho dessas empresas, fica evidente que a lógica que fundamenta a sustentação das margens de lucro a qualquer custo quer dizer realmente “a qualquer custo”. Ou seja, mesmo que esse custo seja a vida de seus trabalhadores, dentre os quais, nem todos parecem ter o mesmo valor, a depender do sexo, gênero, raça, etnia, etc. O tom da denúncia de um desses processos dá a dimensão do que, infelizmente, é corriqueiro: “A chefe da frente de caixa costumava comentar que ‘isso só poderia ser coisa da cor’ e que tiraria ‘todos os pretinhos da frente de caixa’, fechas as aspas. Além de fazer gestos preconceituosos”². 
Esse tipo de assédio e de crime, na sua maioria, não são denunciados, como apontam os relatos que ouvi durante a pesquisa. São raros os casos como o de Shana Ragland, que ficou conhecida pelo vídeo em que se demite da empresa denunciando o assédio e o racismo de gerentes e outros trabalhadores em uma loja do Walmart nos Estados Unidos³. Também nunca testemunhei um relato em que gerentes que assediavam e humilhavam seus subordinados e subordinadas tivesse tido algum tipo de punição pela empresa. Ao contrário: diante de um caso de abuso de autoridade e assédio sexual, depois da ação de um conjunto de mulheres, a cúpula de diferentes níveis da gerência do supermercado, todos homens, acharam por bem transferir o indivíduo assediador para um outro local de trabalho. Essas e outras histórias só reafirmam o que um dos meus entrevistados, trabalhador de supermercado, disse, a partir da sua experiência, sobre como a empresa lida com essas práticas: “se eu tô dando resultado, eu sirvo. Independente das besteiras que eu faço. Que a empresa já tem um jurídico pra salvar, pra tá atuando. Então, se a loja que eu tô dirigindo tá dando lucro, pouco importa as besteiras que eu faço”.
É nesse cenário que, não à toa, muitos entrevistados diziam que o trabalho em supermercados é um tipo de regime de trabalho escravo: horas extras não pagas, a negação de direitos básicos (como a dispensa pra ir no banheiro), a descartabilidade dos que apresentam doenças ou limitações e as recorrentes práticas de assédio e humilhação. Em um país assolado pelo desemprego e pela falta de alternativas de empregos menos precários, perpetuamos a nossa herança escravista de modo muito mais vivo do que se supõe, e que se evidencia na própria percepção dos trabalhadores. 
Então, se essa é a vivência dos empregados diretos dessas redes de supermercados, o que se pode dizer da atividade desempenhada por aqueles que prestam serviços que foram “externalizados”? Se essas empresas não implementam uma política de respeito à vida e aos direitos humanos mais fundamentais entre aqueles que são de sua responsabilidade direta, o que se pode esperar dos serviços terceirizados? Não é precisamente essa “isenção” um dos motivos que torna a terceirização “atrativa” para essas grandes empresas?
Há pouco mais de três meses, em um supermercado da mesma rede Carrefour, mas na cidade do Recife, Moisés Dias morreu de mau-súbito enquanto trabalhava como promotor de produtos alimentícios⁴. Seu corpo foi coberto com guarda-sóis e a loja continuou a funcionar. A imagem estarrecedora da foto que circulou pelas redes sociais já estampava a prevalência de relações de trabalho completamente desumanas. Moisés era empregado como promotor de vendas, uma das ocupações mais significativas no setor, mas que também é parte desse processo de terceirização, ou seja, em que parte das atividades anteriormente exercidas por empregados dos supermercados passaram a ser de responsabilidade de fornecedores ou contratados por empresas de intermediação de mão de obra. 
Na dinâmica da terceirização, assim como os fornecedores de produtos aos supermercados, também as empresas de segurança privada sabem que é a “empresa contratante” que define a política e estabelece as exigências do serviço a ser prestado. É a chamada empresa principal, no caso, a direção do supermercado, que define qual o tipo de serviço, o foco da abordagem e as orientações de como ela deve ser realizada. Não quero com isso dizer que Beto foi assassinado a mando do supermercado. Contudo, em um segmento em que a margem de lucro é pequena e se dá pela grande quantidade de produtos vendidos, a obsessão pela redução das “perdas” significa passe livre para um conjunto de violações. Lembro que me chamou a atenção durante a pesquisa com processos do Tribunal Superior do Trabalho as denúncias de revista feita em pertences e armários de trabalhadores sem o seu conhecimento e que foram entendidas como de direito do empregador. Essa mesma política de “prevenção de perdas” no Walmart dos EUA deixava produtos de cabelos para negros separados e trancados em suas lojas⁵.
A política criminosa do Carrefour de “fazer vista grossa” a essas práticas já se mostrou em vários outros episódios. Talvez o assassinato de Beto viesse a ser apenas mais um se não houvesse um vídeo para escancarar que não há explicação possível que justifique o ato brutal daqueles seguranças e a conivência de quem o presenciou. Em 2009, Januário, homem negro, foi espancado por seguranças de uma empresa terceirizada de uma loja do Carrefour em Osasco depois de ser acusado de estar tentando roubar o próprio carro. Na época, a direção do supermercado afastou da função o segurança responsável pela agressão⁶. Agora, com a mobilização social e a repercussão do caso mais recente, somadas às similaridades com tantos outros casos de assassinato por forças policiais que impulsionaram revoltas nos EUA nesse ano, outros casos sobre esse tipo de prática e abuso vem à tona⁷. 
Diante disso, se combinamos essas políticas das redes varejistas com a lógica de organização e treinamento das empresas de segurança privada, permeadas de várias maneiras pela atuação de agentes públicos da estrutura militar, o que temos são práticas que se sustentam por décadas: de abordagem e constrangimento de clientes negros, de atuação ofensiva e violenta, reprodução dos preconceitos e violações de direitos de todo tipo. É nessa articulação que “fazer vista grossa” por parte do supermercado é parte da conduta da gestão quando o que realmente importa é ter em contrapartida os “resultados esperados”. Com isso, uma diretriz de gestão se transforma facilmente em passe livre para o cometimento de crimes e atrocidades de todo tipo. Isso porque, como em inúmeros outros casos, o perpetrador do crime age sustentado na crença de que aquilo faz parte do seu trabalho, é a atitude esperada da sua posição e que não só estará isento de punições como, muitas vezes, vai ser reconhecido por agir em defesa dos interesses da empresa (ainda que nos bastidores). 
Se essa é uma política adotada para seus próprios empregados, o que esperar da ação diante daqueles que não se enquadram no perfil de “cliente”? O racismo nessas abordagens já é de longe nosso conhecido. Quem nunca viu um homem negro ser vigiado ou abordado por seguranças de supermercado? Não é coincidência que o critério é o mesmo utilizado pelas nossas polícias. Sem entrar na discussão sobre política de segurança e a estrutura dessas empresas de segurança privada, gostaria de ressaltar que, o “tipo de serviço” oferecido por essas empresas corresponde ao que lhe é demandado, afinal, como já sabemos de décadas, “quem paga a banda, escolhe a música”. 
Portanto, sem minimizar o conjunto de outras medidas necessárias e do complexo de relações que nos trouxe até aqui, é inaceitável que não exista por parte do Estado mecanismos de responsabilização dessas organizações. É evidente que a pressão social tem gerado desgaste na imagem dessas marcas, o que impacta financeiramente essas corporações, mas isso é passageiro. Ao não comprar no Carrefour, compraremos em outra rede que talvez tenha práticas tanto ou mais condescendentes com o racismo e violações de direito de todo o tipo. Só isso não é suficiente.
Ao permitirmos a continuidade de um governo que nega a existência do racismo e condena a revolta legítima e necessária de uma sociedade que não pode mais conviver com o extermínio de sua população preta, pobre, indígena… estamos dizendo que sim, podemos aceitar que existam outros “Betos” contanto que não sejam os “nossos”. Não é possível avançar na luta contra o racismo sob um governo que não apenas descontrói os direitos básicos de sua população e seu acesso à justiça, como atua sistematicamente para lhes negar o direito de existir.
O pronunciamento de alguns dos grandes fornecedores do Carrefour⁸ tem uma importância ao menos simbólica, mas ainda nos coloca longe de um modelo de negócios que coloque a vida acima dos lucros. Também é relevante que a rede varejista de origem francesa tenha decidido destinar 25 milhões a um fundo de combate ao racismo no país. Mas, para além de uma estratégia que possa preservar ou recuperar a imagem da maior rede supermercadista do país, que medidas serão capazes de desconstruir a “ideologia corporativa” e o modelo de gestão do trabalho que perpetua o racismo no âmago mesmo dessas organizações? Como esse combate vai se expressar na política de contratação, treinamento e gestão de seus trabalhadores e na relação com seus consumidores, fornecedores e prestadores de serviço?
Enquanto não houver respostas convincentes a essas perguntas, o silêncio não é uma opção. Vidas negras importam e nosso grito vai continuar a ecoar até que sejamos ouvidos! 
NOTAS
[1] O regime de trabalho nessa rede foi objeto de minha tese de doutorado intitulada: “‘Custo baixo todo dia’: redes globais de produção e o regime de trabalho no Walmart Brasil”, defendida em maio de 2019 pelo programa em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas.[2] Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/walmart-e-condenado-a-indenizar-trabalhadora-q…https://noticiapreta.com.br/nos-eua-funcionaria-se-demite-do-walmart-e-…https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/18/homem…https://www.istoedinheiro.com.br/apos-polemica-walmart-diz-que-vai-deix…https://extra.globo.com/noticias/brasil/homem-negro-confundido-com-band…] Como o caso da mulher que foi espancada e estuprada por seguranças e casal vítima de homofobia> Sobre isso ver: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/11/juiza-e-defensor-relatam... e https://noticias.uol.com.br/colunas/rogerio-gentile/2020/11/23/carrefou…https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/11/doze-fornecedores-do-carre....
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Uma primeira versão do texto foi publicada em: https://blog.ufes.br/grupodeconjunturaufes/2020/11/27/racismo-nas-organi...

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