Blog

ENTREVISTA | Daniel Bin | A superestrutura da dívida

Reproduzimos a entrevista que o sociólogo Daniel Bin concedeu ao Painel Acadêmico/UOL sobre o seu livro.
"Há incompatibilidade entre capitalismo e democracia", diz sociólogo
O papel do estado capitalista, a lógica financeira de acumulação e a falta de compatibilidade entre a democracia e as decisões de política econômica são estudadas por Daniel Bin em sua publicação mais recente. 
No livro A Superestrutura Da Dívida, é apresentado um estudo sobre o caráter histórico da constituição classista da política econômica brasileira. Baseado em uma análise de dados concretos, o livro nasce já como uma referência para estudos futuros sobre a temática da despossessão no Brasil e em outras áreas semiperiféricas. 
Explorando a formação das dívidas públicas, tema ainda pouco observado pela sociologia crítica, Daniel Bin explica como a financeirização redefiniu o caráter específico de classe do Estado brasileiro. O autor dedica-se especialmente à análise das políticas econômicas desenvolvidas nos dois mandatos de FHC (1995-2002) e no governo de Lula (2003-2010), arriscando-se ainda a avaliar os principais eventos da política macroeconômica do período subsequente, até o golpe que tirou Dilma Rousseff do poder.
Àqueles que duvidam do caráter golpista da derrubada da presidenta eleita, Bin declara "desejo que eles possam viver em sociedades nas quais os próximos eleitos pelo voto popular não sejam derrubados de seus mandatos sob um pretexto qualquer".
O Painel Acadêmico conversou com o sociólogo a respeito do livro, da importância de seu estágio no exterior e sobre seus próximos estudos.
Confira abaixo a entrevista na íntegra:
Painel Acadêmico: Por que a escolha pela análise da dívida pública como tema da sua pesquisa?
Daniel Bin: Imaginei que estudar a política econômica em geral, e a dívida pública em particular, para além dos seus aspectos ditos técnicos, poderia servir a uma compreensão sociológica de temas econômicos que nem sempre estão abertos ao debate tendo-se em conta justamente questões como classes ou democracia. Talvez eu pudesse mesmo dizer que a dívida foi uma espécie de chave de acesso a fenômenos sociais amplos que a influenciam e dela sofrem influência. Dentre eles eu destacaria a expansão financeira da economia, o papel do estado capitalista vis-à-vis à lógica financeira de acumulação, exploração/expropriação de classe, e finalmente, a incompatibilidade entre capitalismo e democracia econômica evidenciada pela falta de controle democrático sobre as principais decisões de política econômica.
Painel: No livro, você avalia o período dos governos FHC, Lula e alguns eventos dos mandatos de Dilma. É preciso se afastar dos acontecimentos para avaliá-los em termos de política e sociologia?
Bin: Suspendamos, por ora, a consideração da impossibilidade do pesquisador afastar-se do objeto de pesquisa. Não diria que é preciso; diria que pode-se tentar fazê-lo e que pode-se optar por não querer fazê-lo, caso existam condições para isso. Penso que o afastamento histórico — esse sim um pouco mais fácil de alcançar — ajuda na compreensão de fenômenos que, quando vivenciados com mais proximidade, por vezes não são muito claros. Também é verdade que não há garantias que eles venham a tornar-se totalmente acessíveis, mas informações e análises adicionais surgirão para auxiliar na investigação. Por outro lado, a vivência mais próxima aos fenômenos que se quer estudar também oferece oportunidades de compreensão, que são justamente aquelas que o distanciamento dificulta. Penso que cada objeto ou situação de pesquisa demanda uma ou outra abordagem. No caso a que você se refere, não foi uma escolha deliberada a partir desses aparentes cuidados de estudar mais detidamente os períodos FHC e Lula por serem um pouco mais antigos, e estudar com menos ênfase o período Dilma por ser ele mais recente. Na verdade, parte significativa do estudo foi concluída em meados de 2010, ou seja, ainda durante o governo Lula, o que atendia ao que eu me propusera cerca de três anos antes. De todo modo, dada a minha idade eu também experimentara em meu meio social o período FHC, ainda que sem nenhum interesse de pesquisa. Certamente tudo isso influenciou as análises que fiz e as conclusões a que eventualmente cheguei neste livro. Enfim, não há afastamento total entre pesquisador e o objeto que analisa.
Painel: Qual a importância do seu estágio em Wisconsin para a construção do livro?
Bin: Foi lá que os fundamentos teóricos do trabalho foram lançados. É claro que nenhuma pesquisa começa em locais e momentos precisos, e foi esse o caso. A primeira ideia surgiu ainda no início do meu doutoramento, na UnB, mas o resultado acabou sendo bastante distinto. Em Wisconsin, no inverno de 2008 cursei a disciplina Class, state and ideology, que Erik Olin Wright ofertava havia vários anos no Departamento de Sociologia (2008, não custa lembrar, foi quando estourou a crise das hipotecas estadunidenses). Durante aquele curso, bem como ao longo dos encontros frequentes que tinha com Erik nos momentos que ele reservava para atender seus alunos antes de cada aula, construí as bases do quadro teórico a partir do qual viria a coletar e analisar os dados que hoje estão no livro. Ainda assim, o seu formato final também ensaia alguns distanciamentos — talvez ainda tímidos — em relação àqueles fundamentos, especialmente quanto à noção de exploração do trabalho e se esta pode ou não ter seus termos afetados pelo que ocorre para além da esfera da produção. Imagino que possa ser esse um dos pontos potencialmente mais polêmicos do livro.
Painel: Você pretende escrever uma continuação?
Bin: Não! Quando me aproximava do fim da pesquisa, minha atenção começou a voltar-se para aquilo que Karl Marx denominara acumulação primitiva, do que, segundo ele, a dívida pública seria “uma das mais poderosas alavancas”. Hoje meu interesse de pesquisa está mais nas manifestações contemporâneas de despossessões de meios de produção ou de subsistência, bem como de excedentes econômicos, do que a dívida continua sendo um, mas dentre muitos outros. Claro que a questão fiscal, ao interferir na redistribuição de excedentes, deverá ser tratada nessas outras pesquisas.
Painel: O que dizer àqueles que não acreditam que foi golpe?
Bin: Que desejo que eles possam viver em sociedades nas quais os próximos eleitos pelo voto popular não sejam derrubados de seus mandatos sob um pretexto qualquer. 
Autor: Daniel BinEdição: Alameda (tel. 11 3862-0850)Preço e número de páginas: R$ 65,00 (274págs)ISBN: 978-85-7939-468-3Formato: 16x23cm – Brochura
 
 

A superexploração do trabalho no século XXI, entrevista com Juliana Guanais

A professora Jualiana Guanais, do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política (ILAESP) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), concedeu ao site Mundo do Trabalho esta entrevista sobre os livros que acaba de lançar, Pagamento por produção, intensificação do trabalho e superexploração na agroindústria canavieira brasileira (Outras Expressoes/Expressão Popular) e Superexploração do trabalho no século XXI: debates contemporâneos (Ed. Práxis). Guanais também é membra do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GPMT).
 
Mundo do Trabalho - Como foi o processo de elaboração dos dois livros?
Juliana Guanais - O primeiro livro “Pagamento por produção, intensificação do trabalho e superexploração na agroindústria canavieira brasileira” (publicado pela Ed. Outras Expressões/Expressão Popular, com apoio da FAPESP) é resultado de minha tese de doutorado, que é fruto de minha pesquisa de uma década junto dos assalariados rurais que trabalham como cortadores de cana para as usinas de açúcar e álcool do estado de São Paulo. A pesquisa de campo foi realizada em algumas cidades do interior de São Paulo e também em Tavares, sertão da Paraíba, local de origem de grande parte dos trabalhadores entrevistados. O objetivo principal do livro é demonstrar a relação existente entre a forma de remuneração dos cortadores de cana – o pagamento por produção – com a intensificação do trabalho e com a superexploração.
Já o segundo livro “Superexploração do trabalho no século XXI: debates contemporâneos” (publicado pela Ed. Práxis) foi organizado em conjunto com Gil Felix (UNILA) e consolida a interlocução entre um grupo de pesquisadores da UNICAMP, da UNAM e da UNILA que foi reunido a partir do interesse pela obra de Ruy Mauro Marini, intelectual e militante marxista brasileiro que ao longo de sua vida dedicou-se intensamente ao estudo da América Latina, mas que não é muito conhecido nem estudado no Brasil. Além de uma “Apresentação” escrita por mim e por Gil Felix, e de capítulos nossos, o livro conta com capítulos de Giovanni Alves, Adrián Sotelo Valencia, Ana Alicia Peña López e Nashelly Ocampo Figueroa, os três últimos professores da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), com os quais eu e Gil Felix trabalhamos juntos em nossa estadia nesta instituição. Sob pontos de partida e trajetórias de investigação científica diferenciadas, os textos destacam uma categoria central no pensamento de Marini: a superexploração do trabalho.
 
Como o debate sobre a superexploração do trabalho é importante para a sua tese e este livro coletivo?
O debate sobre a superexploração do trabalho ainda é pouco conhecido no Brasil, contrastando com o que ocorre em outros países da América Latina, como é o caso do México e do Chile, por exemplo. Sendo assim, ambos os livros são uma forma para divulgar as obras e o pensamento de Marini para o público brasileiro. No caso específico do livro que é fruto de minha pesquisa de doutorado, analiso a intensificação do trabalho, os acidentes, as aposentadorias por invalidez, as doenças laborais, as mortes súbitas e os falecimentos precoces de cortadores de cana ocorridos nas últimas décadas no Brasil, dialogando com a teoria do valor de Marx e com as contribuições de Marini, especialmente com a superexploração do trabalho.
O mesmo ocorre no caso do livro organizado em co-autoria com Gil Felix, já que todos os capítulos visam, em especial, resgatar o legado teórico de Marini e, a partir dele, contribuir para a reflexão crítica do capitalismo no século atual. Os capítulos partem de pesquisas teóricas e empíricas de longo prazo e se colocam o desafio de analisar e interpretar a realidade social contemporânea à luz da categoria superexploração do trabalho. Assim, além de (re)evidenciar a potência explicativa das categorias de Marini, os estudos também mostram como é possível se construir uma teoria social “viva”, informada por análises que dialogam teoria e empiria. 
 
Como você vê o aumento da mecanização da colheita de cana? Qual a relação disso com a superexploração do trabalho?
No livro analisei a relação entre o pagamento por produção, a intensificação do trabalho e a superexploração, tendo como pano de fundo um contexto em que o corte manual da cana ainda era predominante. Nos últimos anos, com a diminuição do número de cortadores de cana em função da mecanização da colheita das usinas de São Paulo, muitos têm me perguntado se a superexploração do trabalho também não teria terminado. Como deixo claro no livro, os traços característicos fundamentais da superexploração não desapareceram no atual contexto de mecanização e modernização do setor sucroalcooleiro; pelo contrário, permanecem e são imprescindíveis ao capital até hoje. Se o processo de modernização das lavouras de São Paulo não elimina por completo o trabalho manual, por que se pensar, então, que os elementos característicos da superexploração do trabalho, tais como a intensificação do trabalho, o prolongamento da jornada laboral e o pagamento de salários irrisórios, teriam que desaparecer neste contexto específico? A superexploração do trabalho pode, inclusive, ser ainda mais reforçada neste contexto de introdução de tecnologia e de mecanização do corte.
 
Você fez um “doutorado-sanduíche” no México e agora está trabalhando como professora na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), uma instituição que teve como projeto uma integração entre estudantes da América Latina. Você poderia fazer um relato sobre esta experiência, tanto do ponto de vista intelectual, quanto analisando as potencialidades existentes?
Como um dos objetivos de minha pesquisa de doutorado era analisar a intensificação do trabalho e a superexploração, temas muito pouco estudados, decidi fazer meu “sanduíche” no Centro de Estudios Latinoamericanos (CELA), centro que foi dirigido por Marini e que é vinculado à Facultad de Ciencias Politicas y Sociales da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM).  Na ocasião fui supervisionada pelo professor Adrián Sotelo Valencia, ex-aluno e orientando de Marini, um dos maiores sociólogos do trabalho latino-americano.
Logo após defender minha tese, passei no concurso da UNILA, uma universidade bilíngue e que tem como diferencial receber estudantes de vários países da América Latina e do Caribe. A partir de minha atuação como docente do curso de “Ciência Política e Sociologia: Sociedade, Estado e Política na América Latina”, tive a oportunidade de criar uma disciplina nova, intitulada de “Tópicos em Sociologia: Superexploração do trabalho”, na qual apresento aos estudantes o debate em torno da superexploração do trabalho e da teoria marxista da dependência. A disciplina foi e continua sendo muito bem recebida pelos estudantes e acabou servindo de estímulo para que eu e o prof. Gil Felix criássemos o “Grupo de Pesquisa sobre Trabalho” (CNPq). O grupo de pesquisa reúne estudantes brasileiros e estrangeiros de vários países latino-americanos e caribenhos, os quais também têm pesquisado sobre diversos temas relacionados ao mundo do trabalho na América Latina, construindo, assim, contribuições originais no âmbito das universidades brasileiras, o que fica refletido nas linhas de pesquisa que criamos no Grupo, que se constituem como resultado de um profundo diálogo entre os estudos do trabalho e a teoria social latino-americana.
 
_______________________________________________________________________
Os livros estão disponíveis em:
https://expressaopopular.com.br/loja/produto/pagamento-por-producao-inte...
http://www.canal6livraria.com.br/pd-59e8b2-superexploracao-do-trabalho-n...
 
Juliana Biondi Guanais - Professora do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política (ILAESP) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Graduada em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (2007). Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia do IFCH-UNICAMP (2010). Doutora em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia do IFCH-UNICAMP (2016). Doutorado sanduíche realizado na Facultad de Ciencias Políticas y Sociales da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) sob supervisão do prof. Dr. Adrián Sotelo Valencia. Líder do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho (UNILA/CNPq) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa 'Estudos sobre o mundo do trabalho e suas metamorfoses' (UNICAMP/CNPq). Pesquisadora colaboradora do Centro de Estudos Rurais (CERES) da UNICAMP desde 2005. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Trabalho e Sociologia Rural, atuando principalmente nos seguintes temas: trabalho, assalariamento rural, pagamento por produção, superexploração do trabalho, intensificação do trabalho, agroindústria canavieira. Organizadora/autora dos livros 'Superexploração do trabalho no século XXI: debates contemporâneos' (Práxis, 2018) e de 'Pagamento por produção, intensificação do trabalho e superexploração na agroindústria canavieira brasileira' (FAPESP/Outras Expressões, 2018). Lattes

Quem são os cyber-refugiados do Japão?

ENTREVISTA | Mariana Shinohara Roncato
A socióloga Mariana Shinohara Roncato, doutoranda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, recentemente concedeu entrevista sobre os cyber-refugiados no Japão, tema do seu mestrado.
Pesquisadora do trabalho imigrante dekassegui e de relações de classe, gênero e raça, ela esteve no país e conheceu de perto a realidade dos working poor, os trabalhadores pobres japoneses.
Confira, a seguir, a íntegra da sua entrevista ao site Direto do Japão.
Quem são os "refugiados em cyber cafés" do Japão?
Mariana Shinohara Roncato - Falar de pobreza num dos países mais ricos do mundo é uma tarefa complicada. Afinal, diante de um mundo em que, segundo o Banco Mundial, quase a metade da população vive com menos de 2,50 dólares por dia. Se a pobreza no Japão não é tão visível quanto em outros países, impressiona saber que o número de japoneses pobres vem aumentando nas últimas décadas. Dados de 2013 do governo japonês revelam que 16% da população japonesa vive em estado de pobreza relativa. São pessoas que ganham menos que a renda média anual do país que, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), era de 23.458 dólares americanos. Uma das facetas dessa pobreza relativa são os "refugiados em cyber cafés".
O que são, exatamente, os chamados "refugiados em cyber cafés"?
MSR - Os "'refugiados em cyber cafés", ou os cyber-refugiados, são pessoas que não têm moradia e literalmente vivem em lan houses que funcionam 24 horas. Ou seja, são pessoas “sem teto”, mas que não necessariamente dormem na rua. Eles e elas passam a noite na cadeira disponibilizada na lan house, dormem/se acomodam como podem nela e, no dia seguinte, saem para trabalhar. Não se sabe ao certo quando o fenômeno começou mas ele ganhou destaque em 2007, quando foi abordado num documentário realizado por um programa japonês. Há uma estimativa de que, só em Tóquio, pelo menos 4 mil pessoas vivam nesta condição e é bem provável que este número seja mais alto. No entanto, no Japão, desde sempre se conhece a existência dos hotéis capsulas e pessoas que os utilizam para pernoitar e trabalhar no dia seguinte. Trata-se de uma forma de pobreza invisível, pois os cyber-refugiados continuam sendo trabalhadores ativos, embora realizem trabalhos intermitentes e informais, o que não os permite ter condições para alugar uma moradia.
Pessoas dormindo em cyber cafés deve ser uma ideia meio estranha para os brasileiros. Que estrutura esses cafés oferecem para quem os usa como '"casa"?
MSR - No Japão, principalmente em grandes cidades, a existência de cyber cafés que funcionam 24 horas é bastante comum. Só em Tóquio existem centenas. Os japoneses os utilizam como forma de entretenimento. [Nota do editor: Os cyber cafés costumam ter, além de computadores com jogos e conectados à internet, uma biblioteca de mangás que podem ser lidos no local]. Alguns acabam pernoitando por perderem o último horário do transporte público, assim como há os “moradores” destes espaços, chamados em japonês de netto cafe nanmin  e que eu chamo de cyber-refugiados. Diferentemente do Brasil, este tipo de estabelecimento oferece os mais diversos serviços. Alguns são estruturados com chuveiros e lugares para trocar de roupa, outros oferecem pacotes com bebidas e pequenos lanches à vontade. Muitos são divididos com baias para que o cliente tenha um pouco mais de “privacidade”.
Que tipos de pessoas estão nessa condição no Japão?
MSR - O exemplo clássico de um cyber-refugiado é o chamado working poor, ou seja, um trabalhador pobre, majoritariamente com trabalho informal, ou terceirizado, ou que realiza arubaito, ou seja, bicos. São pessoas que não possuem contrato de trabalho e/ou renda fixa para poder alugar uma moradia. Pois, assim como no Brasil, geralmente há a necessidade de um trabalho fixo ou pelo menos uma certa regularidade de renda para manter um apartamento e sabemos que o mercado imobiliário no Japão é bastante caro. Apesar de já ser um fenômeno antigo (principalmente com a reestruturação produtiva das empresas e o neoliberalismo japonês), a crise econômica de 2008 agravou este fenômeno e muitos trabalhadores demitidos naquela época e que não conseguiram reinserção no mercado se encontram nesta situação. Ou seja, é indiscutível que a principal razão deste problema são as condições precárias de trabalho, manifestadas na informalidade.
Por que essas pessoas chegam a essa condição?
MSR - Segundo as pesquisas realizadas até hoje, assim como uma recente pesquisa do governo japonês, a trajetória mais comum é a de um trabalhador que perde certa regularidade de renda e geralmente não possui um trabalho estável e, por isso, acaba chegando nesta condição. Há uma prevalência de homens, assim é expressiva a quantidade de pessoas na faixa etária que vai dos 30 aos 50 anos. Muitos também são migrantes internos, que de alguma forma foram “tentar a vida” em grandes centros urbanos, mas não tiveram a possibilidade de encontrar um trabalho regular. Vale ressaltar que a taxa de informalidade no Japão é muito alta e vem crescendo de forma muito preocupante desde a década de 1990. Atualmente a taxa de informalidade entre a população ativa no Japão é de mais de 37% e compreende trabalhadores com contratos não efetivos, temporários e em tempo parcial ou atuando como arubaito ou terceirizados, dentre outras relações não estáveis de trabalho.  A informalidade do trabalho (que é mais alta entre mulheres e imigrantes) tem uma relação muito direta com a precarização do trabalho. A população que trabalha nestas condições é a fração com mais chances de perder a moradia. O cyber refugiado tem a peculiaridade de ser um morador de rua e, ao mesmo tempo um trabalhador ativo. Por isso, a situação acaba se configurando como um tipo de pobreza bastante invisível e difícil de mapear.
Quanto custa passar uma noite num lugar como esses cyber cafés?
MSR - Depende. Em Tóquio, por exemplo, há estabelecimentos com pacotes noturnos que podem ser de 6 ou 12 horas. É geralmente a este tipo de pacote que os cyber-refugiados recorrem. Neles, você pode “alugar” o espaço — ou seja, uma cadeira e um computador — por menos de 2000 ienes (cerca de 18 dólares). Se você optar por espaços que possuem chuveiros, guarda-volumes ou algum tipo de pequena refeição, este valor aumenta. É importante dizer que existe todo um nicho de mercado para este tipo de população: lan houses, mangá cafés 24 horas (cafés que se pode ler mangás), hotéis-cápsula, guarda-volumes estrategicamente localizados na mesma região e, o mais importante, diversas agências de recursos humanos que contratam pessoas para trabalhos intermitentes, o que permite a manutenção deste fenômeno.
Diante desse valor, não é viável pagar um apartamento?
MSR - Dificilmente. O aluguel no Japão é bastante elevado e para alugar uma moradia, na maior parte dos casos, há a necessidade de uma renda fixa, o que não é o caso desta população.
Existe alguma política do governo japonês para lidar com essa questão?
MSR - Até onde eu saiba, o governo japonês tem realizado algumas pesquisas sobre a temática. Em teoria, há alguns tipos de proteção social para população que se encontra abaixo da linha da pobreza. Porém, não podemos dizer que estas ações conseguem atingir todas as pessoas que precisam delas. Há também sindicatos dos trabalhadores terceirizados que combatem essas formas precárias de trabalho. Mas, a meu ver, enquanto não houver a redução da informalidade de trabalho e um sistema de proteção social mais amplo, dificilmente esta situação se transformará.
Como foi a sua pesquisa com os refugiados em cyber cafés? O que você descobriu sobre essa população?
MSR - O mais curioso deste fenômeno é sua invisibilidade pois, diferentemente do morador de rua “clássico”, o cyber-refugiado é um “sem teto” que não dorme constantemente na rua. Embora quase todo cyber-refugiado tenha tido a experiência de dormir literalmente na rua, esta não é regra. Porque, para que essas pessoas consigam continuar trabalhando, há que se ter o mínimo de descanso, além de um local para a higiene cotidiana, para tomar banho. Isso é possível nas lan houses. Por conta disso e da utilização da tecnologia para encontrar trabalho (sites de recursos humanos, por exemplo), os cyber-refugiados continuam trabalhando nos mais diversos setores da economia. Ou seja, eles permanecem ativos economicamente, trabalhando e consumindo, a despeito de sequer terem uma casa para morar. Tudo isso na terceira maior economia do mundo.